sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Vereda ao Ocaso

I.

Tentei me livrar de introdução. Seria difícil tirar uma súmula do que não decifrei, do que não entendi a essência. O que entendo de vida me limitaria. Então ultrapassei o entendível ou explicável. Desenvolvo; às vezes flui, às vezes empaca – como uma proteção inconsciente... Ou talvez consciente, na tentativa de não me conhecer e permanecer inerte. Ora procuro entender, ora finjo que entendo.

Dilacerava-me pelo caminho. A cada porto perdia uma parte, e seguia cada vez mais vazia – e pesada. O vazio pesa mais que toneladas. Afastava-me dos que não me mostravam a perfeição – só a perfeição me satisfazia. Não falo do que os humanos consideram perfeição, mas a estipulada por mim, livre de qualquer valor imposto. Um andar manco, um telefonema na madrugada, a sutil imundice de um apartamento escuro e úmido. Não sabia me adaptar a um molde, se não ao meu. E assim ia me perdendo, e a fôrma continuava vazia.

Então preferia analisa-los superficialmente. Preferia aquela imagem: impecável, distante e irreal; atiçava minha criatividade. Às vezes preferia imaginá-los pecável, para suprir meus desejos mais ocultos. Imaginá-los saciava minha instabilidade emocional. Mas a triste realidade humana, que nos amarra ao carnal, arrancava-os de mim.

II.

Um tanto forçada pelo acaso, juntei os trapos, as contas, as almas. Parece intenso, assim, descrevendo. Mas a tediosa rotina logo deu sinal, ainda não aprendera a viver a realidade humana e carnal. Sentia-me superior aos desentendimentos, aos ciúmes, às carícias mecânicas. Além do mais o apartamento era limpo demais, e arejado demais, não podia ser ali a concretização da minha idéia. Não ali, não com ele. Precisava reinventar meu objetivo, logo! Aquele se dissolveu ao alcançá-lo. Talvez um amor deixe de ser amor quando materializado, essa pode ser a essência. E o corpo é matéria – meu amor era puro demais pra se concretizar. O concreto é grosseiro; e deforma.

Logo destruí a ilusão de que aquilo me completava. Talvez tivesse tudo, o teu tudo, talvez aquilo fosse plenitude para outro, mas não para mim. Havia espaço demais a ser preenchido. Havia lacunas, vácuos entre sentimentos confusos, vazios.

P.H., a primeira esperança de salvação. Roubaram-no de mim. Expuseram-me à realidade.

Foi arrancado no momento em que se tornou presente. A realidade destrói sonhos – e os sonhos vinham sendo minha realidade.

Queria o mundo cru e destemperado. Precisava do mundo sem a deformação humana, sem temperança, sem títeres.

III.

“Quando se conhece, o antes desconhecido desilude-se, aceita os defeitos, enxerga as diferenças, encontra cabelo branco e por aí vai... E é nessa hora que nasce o tedioso e indesejado amor. E assim foi: com prazo de validade.”

Depois de folhas de papel amassadas enfim achei uma falsa justificativa que o confortaria talvez. A minha indiferença daria um ponto final. Mentia porque a verdade não era entendível – terminava porque queria o amar novamente; terminava pra o amor renascer. Assustaria dizê-lo que o trocava, e o trocava por ele mesmo – pela projeção que fiz dele. E agora estava encarregada de apagar tudo que vivi e remonta-lo seria mais trabalhoso.

Agradava-me a cama de casal toda pra mim, a casa toda pra mim, a vida toda pra mim. Mas eu era metade e precisava daquele amor ali: verdadeiro, desinfetado, que existia por si só.

Por essa metade, que era eu, não sentia nada; talvez um mesclado de pena e indiferença. Vivia da outra metade, que era o abstrato. E o que conheciam de mim era a metade do eu. A outra metade guardava, egoistamente, pra mim – fazia sentir-me minha.

Esse era o conflito: sentir-me amada por mim, e não me sentir apenas minha, porque ser minha já não me interessava. Mesclar minhas duas metades e tornar-me um eu completo e independente.

IV.

O apartamento ficava no centro da cidade. O trânsito me impedia de dormir cedo e me acordava antes das seis. Vez ou outra ouvia berros pela madrugada. Observava por vinte e quatro horas o coração da cidade – e ele era podre. Cada vez fico mais convencida que fui produto do meio em que vivi. Sou filha da cidade, sou filha da premência humana.

A culpa era daquela água de poço. Ela, de alguma forma, me desumanizava a cada banho – me aproximava do esgoto, das ratoeiras, da lama. Acabava me agradando aquele cheiro de ralo, de coisa suja. A culpa não podia ser minha.
Os cômodos ficavam cada vez mais impregnados de mim. Pareciam aderir a minha face. Era como se eu estivesse constantemente dentro do meu eu. Cada pedaço representava uma parte, uma fraqueza, uma conquista, uma saudade, uma enfermidade, um amor. Como era tedioso me analisar internamente toda a semana. A vida corrida na rua não me conquistara, ainda era mais agradável ficar dentro de mim.

Não precisar trabalhar sempre me foi um bálsamo, mas deixava certa dúvida quanto a minha maturidade. O que sabia se limitava a relacionamentos amorosos falidos e a algumas amizades não muito sólidas feitas no período de universidade. Mas o que vinha depois? Nunca tive a disposição necessária para indagar uma resposta. O que me conforta é saber que tive dedicação integral à minha auto-análise. Proveitosa ou não, posso dizer que me conheço melhor que ninguém. Alguém deve considerar isso sorte. Sorte também pela pensão que recebia por um marinheiro defunto. Marinheiro esse que me transmitiu o legado da vida. Nunca deu as caras e me garantiu uma vida cômoda e sem experiências. Não sei se beijo ou cuspo.

V.

“Você era minha luz, e sabia – e não precisou fazer nada pra ser. Mas logo cuidou de apagar; não te interessava ser minha luz. Hoje reconheço teu sadismo! Tenta camuflar com um ar blasé, uma sutil indiferença às coisas mundanas, mas devo dizer: Você está presa aqui, mulher. A matéria te cerca – você é matéria. Abstrai logo esse lado amoral. Vejo-te perdida, suja, apagada; e não sabes o quanto isso me doía. Hoje te digo que aprendi a ser luz sozinho. Desenfadei daquela agonia, e por mais compassivo que te pareça; hoje, por ti, só sinto desprezo. – P.H.“

Quando li quase pus pra fora a vida que tinha no ventre. No sentido mais literal – acabara de descobrir que carregava um feto. Mas como gerar uma vida se eu não era vida? Eu era morte, e escuro, e lama – e via a perfeição nisso. Não retruquei em pôr pra fora o feto ainda mal formado, e me desfiz da última parte viva que ainda me restava.

Estaria eu querendo bem a esse feto? Impedir que sua vida completasse fosse talvez um ato de compaixão. Porque sentia culpa nisso, e mesmo culpada, me desfiz. Desfiz porque o amava e o livrei de viver no escuro – viver no escuro é mortificar-se.

Ouvir o que pensavam de mim sempre me foi um problema; só á mim cabia entender minha instabilidade. E de certa forma o que li me amoleceu – ou petrificou. Talvez com o sentimento de abandono brotasse uma necessidade de reconquista. Ser abandonada por mim era aceitável – eu vivia em constante abandono próprio – mas não por ele. Sabia agora de uma coisa: Eu queria aquele homem! Eu queria a carne dele! Talvez pra suprir o pedaço de vida dele que pus pra fora.

O cenário do metrô me inspirava pra uma resposta. As pessoas passavam atrasadas, estressadas, agoniadas. Os metrôs passavam abarrotados de cabeças pulando pela janela – precisava sentir-me diferente de toda aquela vivência medíocre, de toda aquela mesquinharia que todos ali estavam submetidos. Então escrevia. Escrever me salvava do óbvio; escrevendo eu passava a ser cada palavra que saía.

Escrevi por dias, sem retorno. A cada dia minha sede aumentava.

VI.

“Minha insensatez faz procurar-te, me faz insistir e suplicar por tua pena. Faz dias que escrevo só para você, pedindo que volte. Peço que se comova com o meu desespero e desarme teu coração... Hoje, aqui estou mofando e te procurando por entrelinhas. Sem ter, nem poder... Mas ainda sendo e sentindo. Apesar de angustiante a realidade, tenho vivido-a visceralmente. Apelando por uma salvação – mas curtindo o poço, a dor, o fim. Porque só a mim, cabe essa loucura atemporal que é me querer bem.”

Era isso: eu enfim me-queria-bem! Talvez nem fosse insensatez; talvez estivesse na mais insuportável lucidez.

Mas... não estaria eu blefando? Como uma autodestruição camuflada pela falsa busca de um clímax. Como se estivesse curtindo ver-me no fundo, tentando sair – mas sem fé nenhuma.

E tudo que eu dizia, anulava depois; e tudo parecia mentira, e blefes, e irrealidade. Eu era o próprio paradoxo.

VII.

Depois de uma semana regada de café e cigarros e espera em vão, vinha a necessidade de transcender, brotava a esperança de uma paixão. Algo além do carnal, intenso, que superasse tudo que já vivi. Esperava esperançosa no balcão de um bar. Cuidava de variar as esquinas, os ares.
Depois daquela semana de ter ou não ter não podia ser diferente. Fui e deixei de ser dentro de cinco dias. Tive a vida dentro de mim, e escolhi ser toda morte – o livre arbítrio me assustava. E na procura pela vida que me faltava tinha que me aventurar em corpos desconhecidos.

O nome dele: Junior - Quanta impessoalidade! E como aquele nome o descrevia bem! Seco e sem profundidade. Não lembro de ter-lhe perguntado muita coisa, se muito o drink ou a quantidade de vodca que preferia, mas insistia em me contar toda sua história desinteressante. Mantinha meus olhos fixos no reflexo que o letreiro da rua fazia na moldura de uma réplica de Frida Kaloh. Nunca admirei Frida e nem entendo porque a coloquei em frente ao sofá. Não entendia sequer porque admirar a uma pintura. Mas como Frida me parecia interessante naquele momento! E analisei, minuciosamente, cada traço rude da feição retratada. Enquanto isso ele falava – e se muito digeri umas três frases. Algo como a doença de um irmão que não via, ou a cirrose do pai. Tédio e vodca – como desejava estar sozinha. Eu e Frida. Queria aquela sexta-feira só pra mim. Sentia-me alugada, amiga, psicanalista. Que pânico eu tinha de aproximações!

A sexta passou. Elas sempre passam. E nos sobra a indigestão num sábado à tarde. Algo mal engolido, mal digerido. Elas passam e chegam mais rápido quando não se espera nada. E minha vida era um nada constante. Um vácuo, um silêncio contínuo, uma desvida, uma tarde de indigestão. Restou o gosto de vodca e uma espécie de culpa pela sexta perdida, pela paciência gratuita, pela garrafa de vinho, pelo aperto na cama, pela fraqueza dos meus atos.

E no fim do dia só pensava nas cartas não respondidas – quanto egoísmo o dele! Quanto egoísmo o meu! E vivíamos todos, egoistamente, nossa nostálgica tarde de sábado.

VIII.

A angustia da semana quase me fez esquecer da data: trinta e cinco anos, que idade infeliz! Quase quarenta e sem filhos, quase trinta e com cabelos brancos.

Sozinha, trancada, retraída e cheia de aflição – a maneira menos dolorosa de vencer aquele dia. Não precisava assim me submeter às pretensiosas visitas. Sozinha não tinha o encargo de agradar ninguém, e eu era o meu único alvo. Agradar-me era a minha incumbência naquela noite. Mas como? Eu era toda aflição. E aflita esperava o telefonema, a carta, o aviso, o amparo, a mão, a saudade. Tinha a mesquinha necessidade de condolência por algo que eu mesma escolhi.

A espera pela ligação de P.H. era a única razão de não tirar o telefone do gancho. Enquanto esperava sentia previamente tudo que devera sentir se ele ligasse. Talvez isso me bastasse. Talvez fosse dormir tranqüila depois de aguardar e simular o êxtase. Era o que me restava.

IX.

Ligações, cartas, mensagens, berros. Todos sem retorno.
Fui ficando mais embaixo, mais imperceptível, distante, para segundo, terceiro plano, sumindo aos poucos, desintegrando. Até que desapareci por completo. Aguardei sem premência todos aqueles estágios já premeditados. Já aceitara que o fim chegaria, mas esperava qualquer tipo de agradecimento depois. Esperava a saudade, o desejo, a carência, a necessidade, o desespero, a solidão alheia.
Algo que não vinha de mim me fazia insistir. Algo que anulava meu orgulho, minha integridade. Era dele que partia. P.H. calculara tudo, cada reação para minhas ações impulsivas. De maneira que eu perdesse o controle, e fosse guiada por aquela força que não vinha de mim e que nem eu queria que viesse. Livrava-me assim da culpa por aquela autodestruição que me rebaixava, me mortificava, me anulava e até então me alimentava. E por me alimentar eu insistia, sem culpa.

A falta de resposta de alguma forma preservava o que eu sentia. Mantinha ali o sentimento que me sustentava, o ultimo fio que me prendia ao concreto. Era isso, eu estava almejando concretizar o que sentia, sabendo que quando concretizado deixaria de desejar.

X.

Sofá, janela, reflexo, quadro, cortina; som, Elis, lembranças; vinho, taça, gole, tristeza; fogo, cigarro; papel, caneta, livro; telefone, chamada, fraqueza, visita; campainha, janela, cozinha, vinho, taças, tapete, cama. Escárnio!

Culpa, saudade, vontade de correr dali, fugir de mim, recomeçar, telefonar, expulsar aquele estranho da cama, da casa, da rua, da memória.

Mais uma vez a indigestão. Já não digeria minha imprudência.

XI.

Despretensiosamente no hall do prédio, fumando um cigarro e observando a cidade apoiada na sacada. Quando a porta do elevador abriu mantive meus olhos nos prédios antigos, acompanhando os paços pelo atrito que fazia no chão. Não demorou até reconhecer aquele cheiro de folha seca, era P.H. Já cheguei a pensar que amava mais àquele cheiro do que a ele. Sublimar o amor no cheiro preservava meus princípios anti-materialistas. Inconfundível cheiro que me atormentava todo outono. Era outono e ele enfim voltava. Entrou calado no apartamento. Olhava-me com uma feição distante. A noite tinha um cheiro tão bom que me fez abrir todas as janelas, e afastar as cortinas, e me espichar, e inspirar todo aquele aroma de lua, de estrela, de escuro, de folha seca, de reencontro, de êxtase. Tentei compartilhar a sensação sinestésica, mas P.H. não estava preparado para sentir o cheiro da noite – estava retraído demais. E em todas as noites que sozinha senti novamente aquele cheiro, me vinha um turbilhão de sensações, de saudades, de vontades, de nostalgia. Nostalgia por aquela noite que quase o tive novamente – quase. P.H. se arrependera tão rápido da visita que mal tirei meu corpo da janela e já recolhera seus livros antes espalhados no sofá. A maneira com que jogara os livros havia me passado certo conforto, acreditava em sua permanência, mesmo não sabendo se era bem isso que eu almejava – talvez só a noite já suprisse minha solidão. Mas logo vi que a visita partiu de um ato quase involuntário. Como uma compaixão momentânea, uma breve fuga da realidade. Manter-se à distância era o mais racional. Alimentar sem fé o que eu sentia seria assassinar-me. Mas isso não me importava ali, com aquele aroma me impulsionando à entrega. Sentia-me um tanto masoquista, ou conformista, não sei. Voltei pra sacada e acendi outro cigarro. Que tortura tentadora!

XII.

Na busca pela estabilidade, que instintivamente começava a desejar, e na ressaca de um abandono – abandono de P.H., abandono próprio, abandono dos princípios, abandono da moral, da ética ou de qualquer coisa que me fazia digna de algum sentimento verdadeiro e transcendental – eu enfim encontrava um porto. Um cheio de vácuos, defeitos na base da construção, navios velhos ancorados e pouca movimentação de capital, mas era um porto e me prendia ali.
Uma angustia ainda me acompanhava ininterruptamente. Um aviso talvez, porque não sabia o motivo daquele sentimento, mas me impulsionava a dar fim no que vivia, no que era ou no que me deixava ser, no que deixava fluir, ou mostrava que aquilo não era fluir, era montar, esquematizar a situação de maneira aparentemente favorável, não sei, ainda não sei. Sei que as angustias estavam me destruindo, e os momentos de êxtase também porque eram eles que me prendiam naquela situação – e naquela agonia.

Algumas vezes aquela aflição chegou a me agradar, fazia sentir-me incompleta, necessitada, ainda a caminho do ápice, teria uma estrada de buscas e realizações talvez. O que me assustava era a indisposição à procura do pico, percebia-me indiferente ao meu bem-estar e talvez não chegasse a tempo nesse extremo.

E era como se não conhecesse aquele homem no fundo. Ainda não visitara as entranhas do porto. Não entendia as expressões que deveriam ser entendidas sem questionamentos. Deveriam se traduzir em sensações, mas não me transmitiam nada além de uma dúvida se tinha algo ali a ser entendido ou transmitido, se aquele vazio era o que ele tinha a oferecer. Não sabia por que não tinha o que saber: Ele era aquilo! E não satisfeita, parti!

XIII.

É desnecessário dizer quantas vezes parti, deixei partirem e que me partissem em mil pedaços. Pedaços que quando remontados já não se encaixavam, como se cada criatura levasse uma parte fundamental – que mesmo não vista antes como fundamental, tornava-se quando carecia.

O pedaço levado por P.H. era tão grande que deixou apenas um terço de mim a ser dividido por muitos amores. Logo, não era muito que aqueles estranhos levavam. Por outro lado, era pouco o que me restava, e mesmo sendo gradual o esfacelamento tinha a necessidade de cessar os fragmentos que ainda mantinham-se intactos, ou quase.

Antecipando, digo que não foram resguardados, nem devolvidos, nem reciclados, nem bem aproveitados pelos que os tiraram de mim. Foram sumindo numa velocidade que eu já não podia controlar – minha cede pelo porto aumentava cada vez mais depressa – levando valores, integridade, confiança, respeito, cumplicidade, altruísmo. Só restou-me uma partícula que valia por todas, e o que era eu por dentro começava a transpassar minha carne. Um vírus que marcava minha promiscuidade; marcava minha busca por um porto. Agora sim, meu corpo mostrava enfim quem era eu por dentro e definhava num cubículo úmido e aconchegante. Estava feliz em está dentro daquele corpo. Sentia-me cumprindo uma penitência – me livrava da culpa em negar o paraíso. Meu paraíso era outro: onde os homens não tinham forma definida, nem as coisas tinham nome, e tudo existia por si só. Sem pretensões, sem pudor, sem temperança, sem falta e sem plenitude, sem bitucas de cigarro, sem último gole de vodca, sem fim, sem começo.

XIV.

Tomada por uma coragem repentina, me aventurei na ida até P.H. A tentativa de resgatá-lo a distancia já se mostrava frustrante há tempos. Mostrando-o minha situação poderia resgatar ao menos algum sentimento congelado pela frieza que ele simulava.

Como prendiam minha atenção as expressões dos passageiros do metrô – distantes, sonolentas, sisudas, fechadas. O aperto e o contato indesejado deixavam um ar de constrangimento e ódio pelo espaço a ser divido pelo dobro do suportável. Sentia vergonha e pena de mim por estar me submetendo àquela troca de suor coletiva na tentativa de encontrar P.H. e conta-lo sobre meu drama – o drama que já estava conformada em viver – e arranca-lo algum sentimento, alguma compaixão, paixão, lástima. Queria aproveitar tudo que aquela doença poderia me trazer. Toda doação era bem vinda. A essa altura, cansada de pagar caro por uma pseudo-satisfação, queria que se doassem pra mim, queria carinho de graça, em excesso, que me quisessem bem sem nada em troca, até então não conseguira fazer isso sozinha. Não tinham mais pedaços a serem levados, nem remontados, teria que me reconstruir de doações. Arrancar de P.H. o que ele me tirou era o primeiro passo, a base da nova construção. Talvez dessa vez eu conseguisse ser meu próprio porto.

Quando abriu a porta, vi felicidade nos olhos de P.H.. Mais satisfação que susto que medo de se entregar que receio em demonstrar algum vestígio de sentimento. Carregava um livro na mão e vestia-se roto. Que encantador! Que tentador! Que torturador! A casa era escura e úmida, parecia a projeção do que desejara o tempo todo. A casa, o homem, os gestos, o silêncio, o feeling. Parecia que assistia o que sempre almejara como a uma vitrine, ainda não conseguia me integrar ali – faltava cacife talvez.

P.H. era eu, o que via em P.H. era o que negara ter em mim – paz, serenidade, decisão, controle, autoconfiança. Mas era o que eu inconscientemente, numa necessidade muito humana, desejava que me pertencesse. Projetei toda essa busca em sua figura, como se o tendo de volta pudesse aderi-lo a mim, como se ele fosse a parte que me faltava, o que causaria a fusão dos meus dois extremos. Será que P.H., homem, chegou a existir em algum momento? Talvez durante o tédio da vida a dois. Ou será que todo o tempo ele foi a concretização ilusória do que eu precisava pra sobreviver? O ponto distante que eu precisava enxergar para permanecer caminhando.

O silêncio durou alguns minutos de trocas de olhares – o mais válido durante toda a visita, garanto desde já. Falei tanto, mas tanto, que quando terminei já não sabia por onde começara e se conseguira transmitir fielmente o que desejava. As frases saiam soltas, pulavam de mim, angustiadas, num desejo desesperado de serem compreendidas, e sentidas, e lastimadas. Contei tudo o que ele já sabia, relembrei-o de todas as minhas tentativas, ignorei o fato da obviedade que já tivera lido todas as cartas e ouvido todas as mensagens de voz e me rebaixei questionando a falta de resposta a todas elas. Ele não retrucava nada, permanecia calado, estático, mas de uma profundidade ímpar no olhar.

Talvez eu que não deixasse P.H. corresponder à minha busca aflita. Usava de qualquer artimanha que anulasse o diálogo, que deixasse implícito tudo que deveria estar escancarado. Que deixasse implícita minha maneira primitiva de encarar a realidade, as dificuldades, as fragilidades. Aquele monólogo me confortava de certa forma, me deixava a imaginar o que se passava do outro lado. Pensamentos negativos prevaleciam, mas talvez fosse fraqueza de P.H., talvez sofresse, talvez passasse noites chorando, talvez pensasse em mim todo esse tempo, e a visita que um dia me fez tenha sido talvez um desabafo, que por fraqueza engoliu de volta. O amor, em seu estado bruto, espanta. É, talvez fosse isso, mas o negativismo ainda prevalecia e era isso que me estimulava a permanecer na batalha – a vontade de refutar tais pensamentos.

Sufocada pela falta de resposta, pela firmeza do olhar, pela sua estabilidade emocional escrita na testa, saí depressa dali e peguei o metrô novamente – distante, sonolenta, sisuda, fechada.

XV.

O estado inicial da doença não tocou P.H., ou ainda não deixava transparecer, ou eu mesma ainda não me comovera o bastante. Foi aí que resolvi receber inteiramente o que era me dado, e aquilo também fora me dado, deixaram aquele vírus comigo e meu encargo era deixá-lo tomar todo lugar que deveria ser seu, sem interferência. Aceitar a doença era a solução para todas as minhas angustias, a abstração do carnal, o dó alheio, a compaixão gratuita, os pedaços devolvidos e eu reconstruída. O que precisava era tanto e tão facilmente arrancado que a reconstrução só tornar-se-ia firme se não necessitasse do carnal e atingisse apenas o incorpóreo.

XVI.


E naquele quarto em que eu conformadamente definhava foi a última aparição de P.H.. Tão lúcido! Tão inatingível! Tinha a doçura e o mistério de quando não o conhecia. Olhava-me enternecido. Eu enfim arrancava-o condolência. Que paz aquilo me dava! Via-me afastando, assistia a cena fora do eu antigo. Estava tão realizada com a lágrima que ele tentava disfarçar entre sorrisos no canto da boca que reconheci que assumira enfim o controle de minha instabilidade. Com aquele pedaço essencial devolvido eu me tornara suficiente, a essência de mim me bastava. E aquele corpo já não valia nada. Só pele e osso e mágoas. E eu, que a alma já traspassava o corpo – hoje sem corpo – escrevi porque não havia mais espaço em mim. E por que temer o fim? O fim pode ser lindo. E foi!

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